Nosso ponto de partida…
A intenção deste texto (sem pretensão de ser algo longo e profundo) é contribuir, um pouco, com a reflexão a respeito da luta e resistência do povo curdo. Não parte de uma intenção fechada e muito menos como “dona da verdade”, mas sim da proposta de reflexão aberta e com pés firmes sobre contextualizações históricas e teóricas que partem dos próprios frontes de combates; através das/os militantes que rodam o mundo na busca de ampla solidariedade à luta e resistência do povo curdo em luta. Muito tem sido falado, nos últimos meses principalmente, quando se noticiou o apoio bélico dos EUA e da Rússia no processo de combate contra o ISIS. Refletir sobre esse “apoio” de forma fechada, rasteira e mecânica pode nos levar ao erro de negligenciar o potencial de enfrentamento e a seriedade e firmeza no projeto do Confederalismo Democrático, que se avança por todo território que tem estado sob o controle comunal do povo e com a defesa do YPJ e YPG, além de outras Frentes de Luta Armada.
Nossa, não fechada, reflexão…
O processo de luta dos curdos passou a ser considerado pelos Estados Unidos e Rússia após os curdos derrotarem o Estado Islâmico/ISIS/Daesh em Kobane; por uma razão óbvia: É a região de grande interesse por ser a passagem do petróleo no Oriente Médio e, dando acesso ao mar, facilita a escoação de gás da Rússia etc. É nesse momento que os dois países passam a enviar armamento e tropas, valendo-se do discurso de que seu apoio vem porque os curdos estão lutando contra o Estado Islâmico/ISIS/Daesh. Na verdade, o apoio estadunidense não é aos curdos diretamente; acontece que os EUA passaram a apoiar a SDF (Forças Democráticas Sírias), uma coalizão internacional contra o Estado Islâmico/ISIS/Daesh, que conta com curdos, árabes, assírios, armênios etc.. Em suma, o que os EUA estão “apoiando” é o combate ao “terrorismo”; não a luta pela libertação curda, que é mais abrangente que a luta contra o Estado Islâmico/ISIS/Daesh. Prova disso é o fato de que, mesmo participando da coalizão internacional que também conta com combatentes curdos, o departamento de segurança dos EUA mantém diversos grupos de Rojava em sua lista de vigilância ao terrorismo. Ao mesmo tempo, EUA e Rússia também apoiam Bashar al-Assad, Erdogan e o próprio Estado Islâmico, porque, seja qual for o resultado, eles querem tirar vantagens.
É preciso compreender que dentro do movimento dos curdos existem vários partidos e grupos; o PKK é influente, mas não tem o controle total. O que reivindicamos não é a totalidade disso, mas o que a ala esquerda tem construído. Esse trabalho vem de muito tempo, é um trabalho de base de décadas. E é a ele que a esquerda do mundo precisa se solidarizar. Todo o movimento de libertação curda está em disputa, por forças locais e internacionais. É por isso que o trabalho dos socialistas tem sido constante junto ao povo, no sentido de transformar a cultura, construindo a autodefesa e buscando formar uma organização por fora do Estado – desconstruindo a ideia de que precisam reivindicar a independência para, depois, formar um estado-nação curdo simplesmente. Quando se busca construir com o povo a autodefesa e a autonomia, é justamente para que esse povo não fique refém de governos e forças exteriores no momento em que a guerra acabar. Os militantes marxistas/anarquistas/e outros de posicionamento crítico têm ciência do que representa a entrada dos Estados Unidos e da Rússia; e sabem que pós conflito eles vão impor suas medidas – “É muito fácil, e conveniente para certos poderes, apropriar-se da luta em Kobane para as suas próprias agendas. Mas como Salih Muslim e outros disseram: os curdos não serão mercenários de ninguém. Acabou-se a luta pelos demais. Se as pessoas realmente quiserem apoiar a longo prazo estruturas democráticas seculares, devem empreender ações políticas radicais, como o reconhecimento dos cantões de Rojava e das suas forças de defesa, bem como a eliminação do PKK da lista de organizações terroristas” (Dilar Dirik, ativista no Movimento de Mulheres Curdas).
A estratégia que parece se desenhar é preparar o povo para esse momento. Não é à toa que o trabalho não está apenas nas barricadas, mas sim no trabalho de base cotidiano nas cidades ainda povoadas e nos campos de refugiados. Enquanto se faz um tipo de política representativa internacionalmente, e algumas forças preferem essa esfera, pelo conselho geral dos cantões de Rojava, os militantes de esquerda estão nas comunas e assembleias populares junto ao povo – além do exército. Existem, assim, dois poderes em paralelo, o que ainda se assemelha ao oficial (conselho geral) e o poder do povo que está se construindo. Atualmente, se o conselho geral impor alguma medida de cima, as comunas têm poder de vetar e colocar outra medida em prática. Esses poderes estão disputando e, quando se fala revolução, o que se está a falar é que, depois da libertação dos curdos, a ideia é a de que vença o poder do povo – com autonomia, confederalismo democrático, liberdade para as mulheres, autodefesa do povo. É esse trabalho de fortalecimento do povo para a autodefesa e autonomia e contra o patriarcado que devemos reivindicar!
Há que se defender esse projeto de revolução e emancipação almejado e, dentro dos limites, colocado em prática pela ala socialista; principalmente, no que se refere às mulheres, afetadas de modo mais particular pela cultura patriarcal do que nós aqui nas nossas sociedades burguesas – exemplo, lá ainda era lei o crime de honra, casamentos forçados e mulheres proibidas de utilizar o espaço da rua. Apesar de todos os pesares, após esse processo e ainda que não vingue a revolução, as mulheres curdas jamais serão as mesmas, os homens curdos jamais serão os mesmos, o povo curdo jamais será o mesmo!
[…] Retirado de: https://rusgalibertaria.noblogs.org/arquivos/917 […]
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